Judas e a Empulhação Gnóstica

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  1. Nando_Resistência!
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    "nada há que seja novo debaixo do sol" (Eclesiastes 1:9)


    Resumo : Uma boa análise do
    "Evangelho de Judas", apócrifo do século II recém-traduzido para o
    inglês, com uma explicação razoável sobre o gnosticismo que o produziu,
    pode ajudar a fazer a diferença entre o cristianismo verdadeiro e uma
    empulhação gnóstica, empurrada pela inconseqüente e ignorante mídia
    mundial como "novidade" e "séria ameaça" à credibilidade da doutrina
    cristã.


    Artefatos do "evangelho" de Judas em exibição.




    Para quem conhece tanto a cultura esotérica
    moderna quanto o conteúdo dos quatro evangelhos canônicos, o tal
    "evangelho" de Judas, texto produzido em meados do século II por
    gnósticos da seita dos Cainitas e conhecido como evangelho fraudulento
    por pais da Igreja como Irineu, classifica-se automática e
    inapelavelmente no primeiro caso – além de ser, para quem teve a
    pachorra de lê-lo (como eu), um texto chatíssimo, no limite do
    insuportável. Em vez da expressividade dos evangelhos, o tom do relato
    apresenta-se vago, etéreo, cheio de detalhes numéricos, remetendo
    àquele tipo de linguagem pomposa que se quer passar por sábia com pouca
    ou nenhuma aplicabilidade. Está muito mais para literatura
    paulocoelhina que para texto bíblico. Os estudiosos dos primeiros
    séculos fizeram muitíssimo bem em deixá-lo de fora do cânon.


    Porém, como chegar a essas conclusões sem
    conhecer minimamente o gnosticismo? Por isso, uma boa análise de texto,
    com uma explicação razoável sobre essas teorias, pode ajudar a fazer a
    diferença entre o cristianismo verdadeiro e uma empulhação gnóstica,
    empurrada pela inconseqüente e ignorante mídia mundial como "novidade"
    e "séria ameaça" à credibilidade da doutrina cristã.


    Gnosticismo vem do grego gnosis , "conhecimento". Enquanto o cristianismo se baseia na revelação de Deus ao mundo – que atinge seu ápice na vinda de Cristo ("Quem vê a mim vê ao Pai", João 14:9; "Eu e o Pai somos um", João 10:30) – , o gnosticismo é um movimento muito antigo e de largo alcance até os dias de hoje, sempre de caráter esotérico ( eso significa "dentro" em grego, e esoterikos ,
    "iniciados"), ou seja, que creditava a uns poucos a iluminação
    espiritual através de estudos ocultistas. Há uma semelhança
    impressionante entre as filosofias gnósticas anteriores ao Cristianismo
    – que floresceram em Babilônia, Egito, Síria e Grécia e procuraram se
    amalgamar posteriormente ao ensino de Cristo (o "evangelho" de Judas é
    uma das muitas provas disso) – e os ensinos de Allan Kardec e Madame
    Blavatsky, ambos nascidos no início do século XIX, que condensaram e
    impulsionaram o espiritismo e o esoterismo modernos, respectivamente.
    De fato, as doutrinas espíritas e esotéricas atuais são ramificações do
    velho tronco gnóstico.


    Representação de Demiurgo, o deus criador segundo os gnósticos.




    Um bom ponto de partida para diferenciar
    cristianismo e gnosticismo é uma das questões fundamentais de toda
    religião: a origem do mal. Para o gnosticismo, doutrina dualista por
    excelência, a polarização do mundo em bem e mal era existente desde o
    começo. Rezava o gnosticismo que Deus, pertencente ao mundo espiritual
    (portanto "bom"), cria sucessivos seres finitos chamados éons, e um
    deles (Sofia) dá à luz a Demiurgo, deus criador, que fez o mundo
    material (portanto "mau"). Se o mal está na matéria, a solução lógica
    para o mal é a libertação deste mundo, que se dá após sucessivas
    passagens da alma na Terra (reencarnação). É por isso que, nas
    doutrinas gnósticas modernas, o corpo é invariavelmente visto como
    prisão do espírito. Assim, a solução para o mal no mundo é dada pelo
    homem, a partir do progressivo desenvolvimento espiritual, quando,
    tendo atingido um grau máximo de purificação, não mais precisa
    "rebaixar-se" ao mundo material.


    Já no cristianismo, o mal não é criação de
    algum deus nem atribuído à matéria (criada e aprovada por Deus como
    "boa" em Gênesis), mas sim conseqüência da vontade de autonomia do
    homem, que crê poder decidir entre o bem e o mal sem a participação de
    Deus – de fato, isto é o que significa, segundo consenso dos teólogos, "comer da árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gênesis 2:17)
    após a proibição divina. Desde então, o mal e sua conseqüência direta,
    a morte, entram no mundo, e uma das principais tragédias humanas é que,
    apesar de diferenciar bem e mal, o homem não consegue por si só
    decidir-se sempre a favor do bem – pois sua autonomia é uma condição
    artificial, assim como o mal no mundo, que é temporal e não absoluto.
    Os que reconhecem a necessidade de se arrepender desse desejo de
    autonomia (que é precisamente o pecado original) e recolocar Deus no
    centro de sua vontade para uma vida verdadeira são os salvos, que se
    valem do único meio de fazê-lo: o sacrifício de Jesus, que, sendo Deus
    encarnado – o único ser humano justo, ou seja, não atingido pelo pecado
    original – , pode levar embora todo o mal do mundo ao cumprir na cruz a
    morte que nos era destinada, reconciliando o mundo com Ele. A solução
    para o mal, portanto, está em Deus, não no homem.


    O imbroglio entre visões
    religiosas tão diferentes começou já nos primórdios da igreja cristã.
    Na tentativa de conciliação com os ensinamentos de Jesus, gnósticos
    como Marcião (160 d.C.) e Valentim ensinavam que Cristo é um desses
    seres finitos (éons) que desceu dos poderes das trevas para transmitir
    o conhecimento secreto ( gnosis ) e libertar os espíritos da
    luz, cativos no mundo material terreno, para conduzi-los ao mundo
    espiritual mais elevado. Nisso consistiria, para eles, a salvação.
    Temos, portanto, o encaixe da figura de Cristo, desdivinizada, no
    dualismo gnóstico, com reconhecíveis sinais de mitologia grega (quem
    deixa de ver Prometeu – aquele que rouba o fogo dos deuses para dá-los
    aos homens – na figura desse Cristo gnóstico?). Versões ligeiramente
    diferentes da mesma tentativa de conciliação ocorrem tanto na variação
    kardecista quanto na esotérica. Segundo Kardec, Jesus também não era
    Deus (afinal, Deus jamais se "rebaixaria" à matéria), mas sim o ser
    mais elevado que já passou por esse planeta, deixando-nos um exemplo de
    amor. E o esoterismo, embora não fale de éons, prega a existência de
    excelentes "mestres" espirituais ascensionados, que de tão elevados não
    encarnam mais, cada qual com um raio de atuação. Quem é considerado "o
    mestre do amor"? Cristo! Da mesma forma que no gnosticismo e no
    espiritismo, o esoterismo moderno o "encaixa" na fragmentação do
    governo do mundo, identificando-o apenas como um dos seres mais elevados que atuam sobre nós.


    Segundo Allan Kardec, Jesus não era Deus, mas sim o ser mais elevado que já passou por este planeta.




    Assim, há uma clara convergência entre o
    esoterismo moderno, o espiritismo e o gnosticismo nas seguintes
    considerações centrais: o mal é absoluto e associado à matéria, ao
    corpo físico, à vida na terra; diante disso, enquanto estamos no mundo
    físico, a nós pertence a luta contra o mal e a "salvação" (o
    desenvolvimento do espírito), e para isso Cristo está aí para nos
    ajudar como um dos mestres (ou éons, ou espírito elevado),
    transmitindo-nos sabedoria para tal, como parte de uma grande
    hierarquia de espíritos prontos para guiar o homem – tão grande e tão
    especializada em diversos assuntos que, em meio a tudo isso, Deus se
    torna quase um espectador, uma espécie de "força motriz" quieta e
    silenciosa por trás de toda a agitação dos espíritos. A influência de
    Deus sobre o mundo é assim diluída no poder de uma miríade de seres
    angélicos. Em contato com essas doutrinas, o homem não é levado, como
    na Bíblia, a buscar a Deus ("Buscai o Senhor enquanto se pode achar", Isaías 55:6), mas a se deixar impressionar com o poder de outros seres.


    No entanto, como pode alguém ser
    considerado apenas mestre, éon ou espírito elevado se, em suas próprias
    palavras, afirma-se Deus? Diz Ele: "Eu e o Pai somos um" (João 10:30) e "Eu sou a ressurreição e a vida" (João 11:25),
    entre muitas outras afirmações do mesmo teor. Se seus ensinamentos
    estão corretos, Ele é o que diz ser, senão não passaria de uma pessoa
    perturbada, não um grande mestre. Essa contradição não é percebida
    pelos gnósticos modernos, que deveriam, para uma coerência maior, não
    usar a Bíblia para respaldar suas crenças.


    O "evangelho" de Judas traz exemplos
    flagrantes de muitas dessas doutrinas gnósticas. Logo no início, o
    leitor desse texto encontra uma afirmação bombástica: "Quando Jesus
    surgiu na terra, fez grandes milagres e maravilhas para a salvação da
    humanidade." A Bíblia nunca associa a salvação a milagres e maravilhas,
    que são considerados sinais de que Jesus era o Messias
    esperado pelos judeus, mas sim ao sacrifício de Cristo na cruz por nós.
    Mas o pensamento gnóstico dilui a salvação, atribuindo-a a uma série de
    atos isolados, todos partindo do homem, com uma ênfase no
    conhecimento adquirido pela alma. A maior parte desse evangelho
    gnóstico consiste assim em ensinamentos de "Jesus" a Judas, com uma
    longa explicação sobre hierarquias angélicas em uma nova versão para a
    criação. Diz ele que, primeiro, um grande e invisível espírito está
    sozinho, uma nuvem surge a seu lado e ele pensa: "Que surja um grande
    anjo para assistir diante de mim", e esse anjo, chamado "Autogerado",
    sai da nuvem. A perplexidade do leitor é automática: se esse anjo foi
    gerado por si mesmo, qual foi o papel do grande espírito ao dizer
    aquilo? O relato continua e esse Autogerado (ou gerado com uma
    ajudinha, vá lá) começa a gerar por si inúmeros outros anjos e éons.
    Segue-se uma incompreensível explanação sobre um personagem chamado
    Adamas: "Adamas estava na primeira nuvem luminosa que nenhum anjo já
    vira entre todos aqueles chamados 'Deus'." Esse Adamas é tão poderoso
    que cria anjos, luminares e éons – de onde a "geração incorruptível de
    Seth". A partir daí, os números se sucedem em um tedioso relato: doze,
    vinte e quatro, setenta e dois luminares que fazem trezentos e sessenta
    luminares por sua vez, com trezentos e sessenta firmamentos – tudo isso
    para doze éons privilegiados. Ufa! Além disso tudo, esses éons, no
    final, recebem autoridade, inúmeros anjos e espíritos virgens (?) "para
    a glória e adoração de todos os éons, céus e firmamentos". Hummm...
    anjos e espíritos adorando éons? Isso contraria a Bíblia de par a par.
    Porém, há mais: Seth, o primeiro da linhagem incorruptível de éons, é
    chamado de... Cristo! Com ele, outros quatro éons governam "o mundo dos
    mortos, e principalmente o caos". (Não há explicação de como alguém
    pode governar o caos .) Enfim, esse universo recheado de
    seres angélicos governando o mundo sem que Deus tenha um papel
    significativo em toda a história é a base do ensino gnóstico, sem tirar
    nem pôr.


    Se, na Bíblia, Jesus fala o tempo inteiro no Pai ("Toda
    planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada", Mateus 15:13;
    "qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar
    de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do
    homem quando vier na glória de seu Pai", Marcos 8:38; "Todas as coisas
    me foram entregues por meu Pai", Lucas 10:22; "Por isso o Pai me ama,
    pois dou a minha vida para a retomar", João 10:17
    ), esse Jesus do
    evangelho de Judas está muito mais preocupado com anjos, éons e
    luminares, e alguns desses ainda são adorados – algo considerado
    anátema (maldito, condenado) na cultura judaica e incorporado pelo
    cristianismo como um dos princípios básicos: adoração, só a Deus. É por
    isso que em Apocalipse, por exemplo, o apóstolo João fica extasiado com
    a luz do anjo que vem falar com ele e se prostra para adorá-lo, mas o
    anjo imediatamente o faz erguer-se: "Não faças isso! Sou conservo teu e dos teus irmãos que mantêm o testemunho de Jesus; adora a Deus" (Apocalipse 19:10).


    Além dessa diferença fundamental quanto ao
    poder de Deus no mundo e a adoração, temos também representado no
    "evangelho" de Judas o conhecido dualismo que absolutiza o bem e o mal.
    A idéia gnóstica consiste em que o mal é necessário para que o bem
    sobressaia – e é nisso que se baseia uma pretensa positivação do feito
    de Judas, tão alardeada pela mídia, para que Jesus pudesse ser
    crucificado. No entanto, se no gnosticismo o mal é tão absoluto quanto
    o bem, no cristianismo o mal é um parasita do bem, sujeito a Deus –
    cuja soberania age no sentido de fazer com que os feitos maus dos
    homens acabem cooperando para Seus desígnios. A distinção é clara: Deus
    faz o mal cooperar, mas os homens não são por isso inocentados de seus
    atos maus. As palavras de Jesus na Bíblia são inequívocas sobre isso,
    ao tratar do papel de Judas em sua crucifixão: "Pois o Filho do
    homem vai, conforme está escrito a seu respeito; mas ai daquele por
    quem o Filho do homem é traído! Bom seria para esse homem se não
    houvera nascido" (Marcos 14:21)
    . Essa afirmação é tão importante
    que se repete, com nenhuma variação importante, em Mateus 26:24 e Lucas
    22:22. Vê-se que o conceito de mal no cristianismo não coincide com o
    pensamento gnóstico, que, levado às últimas conseqüências, pode ser
    utilizado perversamente para justificar e desculpabilizar os maiores
    crimes, ao inocentar o criminoso com base no argumento de que "seu mal
    serviu para algo bom".


    Esse dualismo gnóstico se desdobra na
    divisão entre corpo (que é mau) e espírito (que é bom), dicotomia
    ausente no cristianismo. Na Bíblia, o termo "carne" é usado de maneira
    apenas metafórica para designar a nossa natureza pecadora que milita
    contra o Espírito de Deus recebido por nós na salvação para nos
    vivificar, regenerar e santificar. Isso é patente sobretudo no fato de
    que Jesus não ressurge como espírito, mas ressuscita , ou
    seja, tem seu corpo reconstituído por inteiro a ponto de comer com os
    discípulos (veja Lucas 41-43, por exemplo). Mas no evangelho gnóstico
    há uma afirmação atribuída a Jesus que demonstra o dualismo corpo versus
    espírito: "Você [Judas] irá sacrificar o homem que me aprisiona." Na
    Bíblia, Jesus jamais se referia ao próprio corpo dessa forma. Sua morte
    não era, para Ele, uma libertação pessoal da matéria, mas sim um ato de
    amor para a remissão de pecados daqueles que cressem Nele – ato que
    será relembrado agora, na Páscoa, para a alegria dos que foram feitos
    Filhos de Deus a partir de Seu sacrifício.


    Portanto, você pode até crer no "evangelho"
    de Judas e lançar fora tudo o que está escrito nos evangelhos
    canônicos. Mas seja coerente: não deixe de chamar de "gnosticismo", e
    não de cristianismo, o conjunto dos ensinamentos desse "evangelho".
    Quanto a mim, fico com o que o próprio Jesus disse, "Errais, por não compreender as Escrituras nem o poder de Deus" (Mateus 22:29), e com a advertência de um de seus apóstolos:
    "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregue outro evangelho
    além do que já vos pregamos, seja anátema" (Gálatas 1:8)
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